Alimentar-se de maneira
saudável é, sem sombra de dúvida, essencial para manter uma boa saúde. No
entanto, muito se fala sobre nutrientes, propriedades funcionais, substâncias
com poder de cura, que matam, e pouco se fala sobre COMIDA de verdade.
Apesar de um tema muito
atual, Hipócrates, 460 a.C. – 370 a.C.,
já fazia esta associação. Quem não conhece a célebre frase "Que seu
remédio seja seu alimento, e que seu alimento seja seu remédio"? Deviam chama-lo
não só de “pai da medicina” mas também de “pai do Globo Repórter”...
Os programas “tradicionais”
de culinária foram assolados pelos programas de “nutrição funcional”. Se há
pouco tempo o foco dos programas era a receita, hoje é apenas o pano de fundo
deste grande teatro de nutrientes.
Outro dia, enquanto
preparava um prato, a nutricionista Bela Gil disse que cebola era diurética.
Conversando com colegas nutricionistas, uma delas levantou a questão: alguém
come cebola porque é diurética? Ou simplesmente porque é um tempero saboroso
muito apreciado na culinária brasileira? Ou porque combina com a receita? Ou
porque as pessoas gostam? E vamos combinar: pra obter o efeito diurético, haja
cebola!...
Fora as informações
desencontradas... É complicado dizer que a aveia não contém glúten sendo que as
comercializadas no Brasil têm glúten, e que, por este motivo, a associação dos
celíacos do Brasil (Acelbra) veta o consumo de aveia, dentre outros cereais,
para essas pessoas. Já pensou se algum celíaco achar que agora está liberada
porque viu na TV?
Ou então que é melhor
utilizar a batata baroa (mandioquinha) porque batata inglesa tem uma toxina...
Nunca vi ninguém morrer ou passar mal degustando um escondidinho de batata com
carne moída na TV (nem fora dela)! O louro José está aí até hoje...
Essas informações têm muito
a ver com a nutrição norte-americana, onde é muito presente o “nutricionismo”, ou o “terrorismo
nutricional” (e nem por isso os americanos estão/são mais saudáveis,
lembra?).
Todo alimento, todo
ingrediente precisa estar lá porque tem alguma propriedade nutricional? Mesmo
porque, para obter o resultado esperado, precisamos levar em consideração a
quantidade (tamanho da porção ingerida), a biodisponibilidade dos nutrientes e
a frequência com que comemos os alimentos fonte de X, Y, Z.
O que aconteceu com o
conceito da cozinha maravilhosa da Ofélia? E o que há de errado com as
comidinhas caseiras e deliciosas da Palmirinha? Aliás, não deixe minha avó
saber que sou fã da Palmirinha, ela me mata – concorrência, sabe como é... Nos
programas de culinária vemos um pouco de tudo: carnes, leite, vegetais, frutas,
massas, batata baroa... Mas também a batata inglesa!
Confesso que boa parte das
informações que circulam na mídia eu desconheço. Sou uma má profissional por
não recomendar o consumo de limão porque este alcaliniza o sangue? Por não
saber de cor a composição química por 100 gramas ou por porção do agrião?
Certa vez, perto do Natal,
comentei com alguém que minha fruta preferida é a lichia. Sabendo que eu sou
nutricionista a pergunta veio como um raio “Lichia é boa pra quê?”. Boa pra
mim! Juro que eu não como lichia pela baixa densidade calórica ou pelo teor de
vitamina C e água. Eu como LICHIA. Porque é uma fruta. Comi porque era Natal. E
porque é a minha favorita!
Só não foi pior do que
quando minha tia avó, que há anos chupa laranja todos os dias depois do almoço,
me disse que viu na TV que laranja tem pectina...
Cri cri cri cri cri...
Nitidamente aquela
informação não significava NA-DA pra ela, que continuou chupando a laranja.
Dietética, técnica dietética
e dietoterapia fazem parte da grade curricular de todo curso de nutrição. Com
os estudos e com a prática clínica acabamos por memorizar informações
nutricionais sobre alguns alimentos, as porções por medidas caseiras, a característica
dos grupos alimentares da Pirâmide Alimentar, da roda dos alimentos, alimentos
ricos em fibras, vitaminas, gorduras, pra que servem as fibras, vitaminas,
gorduras, etc. No entanto, “comemos alimentos, não nutrientes!” – foi essa
inclusive uma das primeiras lições aprendidas quando fiz especialização em
transtornos alimentares.
Deixe os nutrientes com o
nutricionista e fique com a comida.
O nutricionista conhece o
suficiente para aplicar o conhecimento necessário para cada caso. Não espere
que saibamos a composição centesimal, peso, calorias, vitaminas A, B, C, D, E,
K, cálcio, ferro, zinco, molibdênio de todos os sei-lá quantos alimentos
naturais e industrializados que existem!
Mas não julgue o
nutricionista por desconhecer a função da pitaia. Não espere de mim o
molibdênio! As tabelas nutricionais, guias, diretrizes, livros, artigos
científicos estão aí para serem consultados. Não somos tabelas nutricionais
ambulantes!
Referências:
Acelbra [Internet]. [acesso
em 2014 Oct 1]. Disponível em: http://www.acelbra.org.br
Machado RMD, Toledo MCF.
Determinação de glicoalcalóides em batatas in natura (Solanum Tuberosum L.)
comercializadas na cidade de Campinas, Estado de São Paulo [Internet]. Ciênc.
Tecnol. Aliment. 2004; 24(1): 47-52. [acesso em 2014 Oct 1]. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/cta/v24n1/20040.pdf
Dedico este post para as colegas de faculdade Fernanda Agapito e Andrea Toledo. Continuem exercitando a crítica e estimulando discussões e reflexões sobre nossa profissão. É bom saber que não estamos sozinhos nadando contra a corrente.