quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Não somos tabelas nutricionais ambulantes!


Alimentar-se de maneira saudável é, sem sombra de dúvida, essencial para manter uma boa saúde. No entanto, muito se fala sobre nutrientes, propriedades funcionais, substâncias com poder de cura, que matam, e pouco se fala sobre COMIDA de verdade.

Apesar de um tema muito atual, Hipócrates, 460 a.C. –  370 a.C., já fazia esta associação. Quem não conhece a célebre frase "Que seu remédio seja seu alimento, e que seu alimento seja seu remédio"? Deviam chama-lo não só de “pai da medicina” mas também de “pai do Globo Repórter”...

Os programas “tradicionais” de culinária foram assolados pelos programas de “nutrição funcional”. Se há pouco tempo o foco dos programas era a receita, hoje é apenas o pano de fundo deste grande teatro de nutrientes.

Outro dia, enquanto preparava um prato, a nutricionista Bela Gil disse que cebola era diurética. Conversando com colegas nutricionistas, uma delas levantou a questão: alguém come cebola porque é diurética? Ou simplesmente porque é um tempero saboroso muito apreciado na culinária brasileira? Ou porque combina com a receita? Ou porque as pessoas gostam? E vamos combinar: pra obter o efeito diurético, haja cebola!...

Fora as informações desencontradas... É complicado dizer que a aveia não contém glúten sendo que as comercializadas no Brasil têm glúten, e que, por este motivo, a associação dos celíacos do Brasil (Acelbra) veta o consumo de aveia, dentre outros cereais, para essas pessoas. Já pensou se algum celíaco achar que agora está liberada porque viu na TV?

Ou então que é melhor utilizar a batata baroa (mandioquinha) porque batata inglesa tem uma toxina... Nunca vi ninguém morrer ou passar mal degustando um escondidinho de batata com carne moída na TV (nem fora dela)! O louro José está aí até hoje...

Essas informações têm muito a ver com a nutrição norte-americana, onde é muito presente o “nutricionismo”, ou o “terrorismo nutricional” (e nem por isso os americanos estão/são mais saudáveis, lembra?).

Todo alimento, todo ingrediente precisa estar lá porque tem alguma propriedade nutricional? Mesmo porque, para obter o resultado esperado, precisamos levar em consideração a quantidade (tamanho da porção ingerida), a biodisponibilidade dos nutrientes e a frequência com que comemos os alimentos fonte de X, Y, Z.


O que aconteceu com o conceito da cozinha maravilhosa da Ofélia? E o que há de errado com as comidinhas caseiras e deliciosas da Palmirinha? Aliás, não deixe minha avó saber que sou fã da Palmirinha, ela me mata – concorrência, sabe como é... Nos programas de culinária vemos um pouco de tudo: carnes, leite, vegetais, frutas, massas, batata baroa... Mas também a batata inglesa!


Confesso que boa parte das informações que circulam na mídia eu desconheço. Sou uma má profissional por não recomendar o consumo de limão porque este alcaliniza o sangue? Por não saber de cor a composição química por 100 gramas ou por porção do agrião?

Certa vez, perto do Natal, comentei com alguém que minha fruta preferida é a lichia. Sabendo que eu sou nutricionista a pergunta veio como um raio “Lichia é boa pra quê?”. Boa pra mim! Juro que eu não como lichia pela baixa densidade calórica ou pelo teor de vitamina C e água. Eu como LICHIA. Porque é uma fruta. Comi porque era Natal. E porque é a minha favorita!

Só não foi pior do que quando minha tia avó, que há anos chupa laranja todos os dias depois do almoço, me disse que viu na TV que laranja tem pectina...

Cri cri cri cri cri...

Nitidamente aquela informação não significava NA-DA pra ela, que continuou chupando a laranja.

Dietética, técnica dietética e dietoterapia fazem parte da grade curricular de todo curso de nutrição. Com os estudos e com a prática clínica acabamos por memorizar informações nutricionais sobre alguns alimentos, as porções por medidas caseiras, a característica dos grupos alimentares da Pirâmide Alimentar, da roda dos alimentos, alimentos ricos em fibras, vitaminas, gorduras, pra que servem as fibras, vitaminas, gorduras, etc. No entanto, “comemos alimentos, não nutrientes!” – foi essa inclusive uma das primeiras lições aprendidas quando fiz especialização em transtornos alimentares.

Deixe os nutrientes com o nutricionista e fique com a comida.


O nutricionista conhece o suficiente para aplicar o conhecimento necessário para cada caso. Não espere que saibamos a composição centesimal, peso, calorias, vitaminas A, B, C, D, E, K, cálcio, ferro, zinco, molibdênio de todos os sei-lá quantos alimentos naturais e industrializados que existem!

Mas não julgue o nutricionista por desconhecer a função da pitaia. Não espere de mim o molibdênio! As tabelas nutricionais, guias, diretrizes, livros, artigos científicos estão aí para serem consultados. Não somos tabelas nutricionais ambulantes!

Referências:

Acelbra [Internet]. [acesso em 2014 Oct 1]. Disponível em: http://www.acelbra.org.br

Machado RMD, Toledo MCF. Determinação de glicoalcalóides em batatas in natura (Solanum Tuberosum L.) comercializadas na cidade de Campinas, Estado de São Paulo [Internet]. Ciênc. Tecnol. Aliment. 2004; 24(1): 47-52. [acesso em 2014 Oct 1]. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/cta/v24n1/20040.pdf


Dedico este post para as colegas de faculdade Fernanda Agapito e Andrea Toledo. Continuem exercitando a crítica e estimulando discussões e reflexões sobre nossa profissão. É bom saber que não estamos sozinhos nadando contra a corrente.

18 comentários:

  1. Eu amei seu texto!
    E pode ter certeza que vocês não estão sozinhas indo na contramão do modismo

    =)
    Bruna

    ResponderExcluir
  2. Ótimo texto! Me formo ano que vem em nutrição e essa questão me vem sendo cobrada como se fôssemos um google de quantidade e qualidade de todos os alimentos e produtos alimentícios, o que por vezes me faz questionar se serei uma boa profissional mesmo não me contendo tanto a essas informações quanto nos cobram saber. Parabéns!
    Ana Carolina

    ResponderExcluir
  3. Perfeito, faz eu me sentir menos só como nutricionista :)

    ResponderExcluir
  4. Me identifiquei demais com o seu texto. Sigo essa linha sim e procuro dispensar modismos. DEMAIS!!
    Obrigada!
    Izabelle

    ResponderExcluir
  5. Texto incrível. Parabéns!

    ResponderExcluir
  6. Definitivamente esse é o melhor texto que já li sobre o tema!
    Parabéns! Também sou nutricionista e concordo totalmente com isso.

    ResponderExcluir
  7. Denise Giacomo da Motta15 de outubro de 2014 às 18:09

    Excelente texto! Deve ser divulgado amplamente!

    ResponderExcluir
  8. Parabéns pelo texto, acredito que a maioria passa pelo mesmo!!!

    ResponderExcluir
  9. Perfeito Taís!! Vamos fundar o movimento "Eu não sei um monte de coisas, mas sei umas outras tantas"? rsrsrs
    Abs, Vic

    ResponderExcluir
  10. Excelente posição e acho que você deveria ser escritora, escreve divinamente... Parabéns

    ResponderExcluir
  11. Senti um peso tirado dos meus ombros, sou estudante de Nutrição e já cansei de ouvir condenações "você não sabe pra que serve isso?" ou "nossa, você come esse tipo de coisa?".

    ResponderExcluir
  12. Olá, fiquei feliz em saber que existe profissional que defende o fato de que se deve necessitar de mudanças nutricionais ao invés de MODA, as pessoas de hoje por exemplo, nem são celíacas e aderem a dietas sem glúten só por estar na MODA, concordo com você, parabéns!

    ResponderExcluir
  13. Muito obrigada a todos! Ler isso me deixa muito feliz e ainda mais motivada a seguir em frente nesta profissão tão amada, mas tão complicada... ;)

    ResponderExcluir
  14. Thais , parabéns pelo seu texto , sou colega de profissão e tenho o mesmo pensamento que você, acredito que nosso papel como profissional da saúde é exatamente este de desmistificar e trazer para a vida real todo esse desencontro de informações .

    ResponderExcluir