No último post falei que o
lançamento do livro “Salt, Sugar, Fat:
How The Food Giants Hooked Us” (Sal, Açúcar e Gordura: Como os Gigantes da
Comida nos Fisgaram, em tradução livre) me fez refletir sobre duas coisas: a
primeira, já apresentada, foi a reflexão sobre o ambiente extremamente
obesogênico em que vivemos e o ultrapassado, porém ainda atual, estigma da
obesidade.
A segunda coisa que pensei com tudo isso é também um paradoxo: você já reparou que o padrão de beleza parece andar na contramão da disponibilidade e acesso aos alimentos?
Que o padrão de beleza se modifica com o tempo, disso todos nós sabemos, mas ocupo-me aqui em tentar relacioná-lo brevemente com o contexto histórico. Tentei abordar um pouco sobre os padrões masculinos também, mas foi difícil encontrar referências. Não sou nenhuma expert em história ou artes. Gostaria apenas de compartilhar uma linha de raciocínio da minha visão como nutricionista.
A primeira referência de
idealização da figura feminina é uma estatueta chamada “Vênus de Willendorf”
esculpida aproximadamente há 22000 – 25000 anos! Os seios, a barriga e a vulva
proeminentes remetem à fertilidade, segurança, sucesso e bem-estar. Essas
características seriam essenciais à sobrevivência e perpetuação da espécie
humana no período da Pré-História (Paleolítico), representando uma escolha
certeira num ambiente onde o homem lutava constantemente pela busca de
alimentos.
Vênus de Willendorf |
Nas pinturas renascentistas,
que surgiram no século XV, as mulheres eram curvilíneas e teriam,
provavelmente, um IMC que as classificariam com sobrepeso ou obesidade nos dias
de hoje. Já o ideal de beleza masculino era mais semelhante do que temos
atualmente: um biótipo atlético, mas sem exageros e sem a obsessão pelo tamanho
do pênis. O Renascimento, por sua vez, foi precedido da Peste Negra
e Guerra dos Cem Anos, que resultou em um longo
período de fome na Europa.
A Primavera (Botticelli), 1482
|
O Nascimento de Vênus (Botticelli), 1483 |
A Criação de Adão (Michelangelo), 1511 |
David (Michelangelo), 1504 |
Passando pela Revolução
Industrial, já saltando para o final da Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918), a
foto de uma “pin-up” era chamada de “cheesecake”, sobremesa típica americana,
elogio a uma mulher bonita em simplificação à frase “better than cheesecake” (melhor que cheesecake, em tradução livre). As “pin-ups”, por sua vez, são modelos femininos considerados sensuais,
que misturam a submissão da mulher dona de casa, a inocência e o erotismo. Eram
mulheres de seios fartos, quadris largos, pernas voluptuosas e cintura fina. Ainda
no contexto “gastronômico” do fato histórico, um dos símbolos atrelados a esta
imagem feminina é a cereja, que remete a cor do batom forte característico
usado por elas e a sensualidade das frutas vermelhas.
Sem dúvida foi um período de
muita fome em diversas partes do mundo. Com a indústria focada na produção de
armas, os países sofrem com a escassez de comida. Um dos estudos mais marcantes
sobre os efeitos da desnutrição no homem foi o “The Minnesota Starvation
Experiment” (O Experimento de Inanição de Minnesota, em tradução livre), do pesquisador Ancel Keys. Este estudo jamais
seria aprovado pelo comitê de ética nos dias de hoje, mas na época contou com
mais de 400 homens voluntários e destes, apenas 36 foram selecionados para o
estudo. Eles tinham a idade entre 22 e 33 anos. O importante é que, ao final do
experimento, além da perda de aproximadamente 25% do peso inicial, os jovens
apresentaram quadros de depressão, estresse, isolamento, autoagressão,
diminuição do interesse sexual e aumento da preocupação de comida! Seria como
se esses jovens trocassem as revistas masculinas pelas de culinária...
As coisas começaram a mudar
no período pós-guerra: muitas mulheres perderam seus maridos e viram-se
encarregadas de sustentar sozinha a família. Ao contrário da voluptuosidade das
pin-ups, as mulheres magras, ainda
reflexo da fome, começaram a se destacar. Era o início da figura da mulher
produtiva e sexualmente independente. As roupas acompanharam esta “liberdade”
ganhando modelos menos ajustados ao corpo, rompendo com o aprisionamento do
corset. O maior símbolo desta época foi a modelo inglesa Twiggy, andrógina,
macérrima, de cabelos curtos e vestidos largos.
Twiggy |
Comida já não era mais o
problema, e nos 70 e 80 as dietas e academias popularizaram-se rapidamente.
Fazer dieta já fazia parte das preocupações principalmente das mulheres. Na
década de 90 surgem as “supermodelos”: mulheres altas, esguias que, como o
próprio nome sugere, vieram para ser o “modelo” a tentar ser (per)seguido.
Jane Fonda |
Sylvester Stallone |
Madonna |
"Supermodelos": Stephanie Seymour, Christy Turlington, Linda Evangelista, Claudia Schiffer, Cindy Crawford e Naomi Campbell |
Falamos no último post
também sobre a abundância de comida e na possibilidade de encontrarmos
alimentos em locais onde jamais pensaríamos que um dia fossemos encontrar, como
por exemplo nos postos de gasolina. Em oposição a isso vemos, desde o início do
século XXI, a supervalorização da magreza das modelos de passarela. Mais uma
vez um paradoxo, já que a obesidade continua crescendo. Uma pequena minoria das
mulheres tem o corpo de uma modelo. Mesmo entre as modelos, existem as
“naturalmente magras”, mas existem as que lutam contra a balança por causa da
profissão. Uma dieta restritiva pode levar à fadiga, fraqueza, constipação,
queda de cabelos, pele seca, unhas quebradiças, náuseas, diarreia, alterações
menstruais, edema e intolerância ao frio e consequências mais graves como
distúrbios cardíacos, arritmias, gota e morte súbita.
Karlie Kloss |
Angelina Jolie |
A divulgação de informações
sobre saúde faz com que as pessoas queiram melhorar a alimentação e praticar
atividade física, e atualmente também vivemos a época em que mulheres e homens
desejam aumentar a massa muscular. Quando, novamente, os excessos extrapolam os
limites da saúde, surgem os efeitos deletérios que, neste caso, podem ser a
vigorexia, o uso de anabolizantes e os implantes e/ou injeções de próteses e/ou
óleos.
Madonna |
Chris Hemsworth |
Gracyanne Barbosa |
Quanto mais arraigado está o
ideal de beleza, maior é o desconforto de quem não se encaixa nos padrões. Essa
é uma das “queixas” que eventualmente surgem no consultório, principalmente
entre os pacientes mais jovens que procuram “consertar” o corpo como se fosse
massinha de modelar, da mesma maneira como a mídia, as revistas e alguns
profissionais da área da saúde costumam sugerir: ter o corpo que você sempre
sonhou está a seu alcance, basta aplicar isso, levantar aquilo, tirar aqui,
colocar ali, puxar de lá... Mas não, aquele corpo nunca será seu, assim como outra pessoa nunca terá o seu.
"Não existe jeito errado de ter um corpo", em tradução livre |
Referências:
Ayto, J. Movers and shakers: a chronology of words that shaped our age. 1ª ed. Oxford University Press; 2006.
Isolda PNN, Maduro FM, et al. Hiperuricemia em Obesas Sob Dieta Altamente Restritiva. Arq Bras Endocrinol Metab. 2003 Jun; 47(3):266-70.
Thais, Parabéns, adorei seu blog, assuntos maravilhosos e altamente explicativos esclarecedores. Desejo a você muito sucesso!!
ResponderExcluirObrigada!
ResponderExcluirEsse blog é feito pra vocês! É ótimo ter esse feedback!
Nossa, os posts estão cada vez melhores!
ResponderExcluirÉ bom ver uma profissional da área falando desse jeito, pra fazer o povo entender que ser "mais bonito", não tem relação alguma com a balança!
Que bom que gostou!
ExcluirÀs vezes é preciso andar na contramão pra alcançar o bom senso.
Abç